Nosso direito sucessório é complexo e oneroso, o que fez com que ao longo dos anos as pessoas buscassem outras formas de dispor do seu patrimônio em vida, a fim de evitar o temeroso processo de inventário.


Uma das alternativas utilizadas é a doação do patrimônio para os herdeiros.
Contudo, mesmo existindo previsão legal nesse sentido, muitas vezes ocorrem diversas irregularidades na prática, especialmente a ocorrência da chamada “doação inoficiosa” que nada mais é do que a “invasão da legítima”, ou seja, quando a doação ultrapassa a metade do patrimônio do doador.


O artigo 549 do Código Civil prevê que “nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.


O doador que tenha herdeiros necessários (descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro – artigo 1845, do CC) só poderá doar até o limite máximo da metade do seu patrimônio existente quando da liberalidade. A outra metade é chamada de “legítima” e pertence a tais herdeiros. Uma doação que ultrapasse tal limite é considerada nula e chamada de inoficiosa.


Mas a pergunta é: como se calcula esta porcentagem de 50% dos bens? São dos bens tidos pelo doador quando do ato da doação? Ou dos bens tidos pelo falecido no momento do óbito?


A Terceira Turma do STJ (REsp n° 2.026.288/SP), por unanimidade, decidiu que a doação inoficiosa – aquela que excede metade do patrimônio do doador e compromete a legítima dos herdeiros necessários – é definida no momento da liberalidade, e não na data do falecimento do doador.


Neste julgado o Juízo de primeiro grau declarou a doação inoficiosa e reconheceu a sua nulidade sob o fundamento de que a doação do imóvel ultrapassou a parte disponível do patrimônio do doador e incidiu sobre a legítima, que deve ser reservada aos herdeiros necessários.


O TJSP, em sede de recurso de apelação, limitou a nulidade à parte que excedeu a porção disponível do patrimônio.


Reformando a decisão, o STJ destacou que “o excesso caracterizador da doação inoficiosa deve ser considerado no momento da liberalidade”, nos termos do art. 549, do Código Civil. E, neste caso concreto, à época da liberalidade, o bem imóvel doado não possuía valor superior a 50% do patrimônio do doador, motivo pelo qual o STJ reconheceu a validade do negócio.


Eventual excesso de doação que, por acaso, infrinja a legítima dos herdeiros necessários deverá ser mensurado no momento do ato de liberalidade e não quando do óbito do doador.
Nesta linha lecionam os Professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:


O cálculo da legítima (e, por conseguinte, do excesso, ou não, da doação) será realizado no momento da realização da doação e, por conta disso, eventuais variações patrimoniais para mais ou para menos, posteriores à liberalidade, não validam o que é inválido ou invalidam o válido. Fundamental é a aferição do valor do patrimônio contemporâneo a cada ato dispositivo. Por isso, a doutrina afirma que “se toma irrelevante qualquer variação patrimonial do doador, após a celebração do negócio, podendo ele enriquecer ou empobrecer”. A explicação é lógica: se assim não fosse, o doador continuaria doando a metade que possui, a cada momento, até promover o total esvaziamento de seu patrimônio (Direito dos contratos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 811/812).

Deve-se levar em consideração se no momento do ato de liberalidade (doação) o bem imóvel doado representava mais de 50% do patrimônio do doador, pois, se não representava, a doação é perfeitamente legítima, mesmo se quando do óbito não haja mais nenhum bem passível de ser partilhado.


Assim, não há que se falar em nulidade da doação se ao tempo do óbito o falecido/doador não tenha mais os bens que tinha quando da doação podendo-se afirmar que ela não será inoficiosa, eis que quando do ato de liberalidade (doação) este bem doado não representava mais que 50% do seu patrimônio naquela época.


Por fim, a legitimidade de propor a ação de nulidade da doação é do herdeiro necessário que teve sua legítima prejudicada pela doação, com prazo prescricional para ajuizamento de 10 anos contados do registro do ato jurídico que se pretende anular. Salienta-se julgado do STJ excetuando a contagem iniciando-se da ciência inequívoca do prejudicado se anterior ao registro: Na ação de nulidade de doação inoficiosa, o prazo prescricional é contado a partir do registro do ato jurídico que se pretende anular, salvo se houver anterior ciência inequívoca do suposto prejudicado. STJ. 3ª Turma. REsp 1.933.685-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/03/2022 (Info 729).

Juliana Buosi Carlini

Presidente da Comissão Assistência Judiciária

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